Li recentemente um livro chamado O doador de memórias, de Lois Lowri, e entendi porque o mesmo teve mais de 11 milhões de exemplares vendidos no mundo; Trata-se de uma ficção infanto juvenil que narra uma realidade muito comum nas sessões de psicoterapias, a do desejo generalizado que muitas pessoas têm de querer esquecer aquilo que lhes é desagradável. Na obra, um jovem é escolhido para substituir aquele que detém as lembranças de toda a comunidade, lá, as pessoas não lembram-se do passado, ninguém tem mágoa de ninguém, não existe nada de negativo ou errado com a sociedade ou com seus membros, pois todos são saudáveis, bem educados, bem sucedidos em suas famílias e em suas profissões. Também não há fome, doença, tristeza, agonia, ansiedade, raiva, depressão, cansaço, estresse, acidentes ou morte descontrolada. Não seria um local ideal para vivermos?

          Todavia, o escolhido, à medida em que lhes são passadas pelo seu antecessor as memórias comuns (ele será o novo guardião de memórias da comunidade, precisa saber de tudo o que as pessoas não lembram), questiona-se sobre o por quê de as pessoas não terem o direito de lembrar do passado.  Como eu disse, é comum nas sessões de psicoterapia o sofrimento da parte de algumas pessoas quando trazem lembranças de fatos que ainda as machucam muito, mas, não será com o esquecimento que as coisas irão melhorar. Quando tentamos evitar tais lembranças fugimos de situações e de pessoas que possam demonstrar nossa fragilidade, ficamos evitando-as (e com medo) o tempo todo. Nos tornamos refém de nossas lembranças.

          Um erro muito grave é achar que um fato, por ter acontecido no passado, “já era”… Toda a vez que trouxermos algo para o momento atual ele deixa de ser passado, e se junto com a lembrança vierem sentimentos desagradáveis, é sobre estes que devemos nos preocupar. Lembrar é um processo da memória; podemos lembrar da morte de um familiar ocorrida há 20 anos, mas o sentimento não deverá ser o mesmo daquela época. O luto, necessário quando do acontecido, nos deixará tristes, desanimados, chorosos, e ainda que se torne um quadro depressivo é perfeitamente compreensível. Agora, tanto tempo depois, os sentimentos já devem estar ajustados.

          Desta forma, diferentemente do livro, precisamos saber lidar com as lembranças que a memória nos traz dando a elas a devida importância, afinal se não as esquecemos é por que carregam um significado que precisamos entender. O oposto a isso são momentos insignificantes dos quais nem lembramos mais, uma vez que não necessitamos deles.

          Poder encarar de frente situações desagradáveis do passado, dar-lhes novos significados, é fortalecer-se para suportar outras (e novas) dificuldades que virão! E a isto o trabalho psicoterápico bem conduzido pode auxiliar muito bem. Melhor do que esquecer sentimentos ruins é poder entendê-los e não sofrer mais com isto.

César Augusto – psicólogo

* texto publicado em maio de 2019