“Acredito que contrair o vírus do preconceito e da ignorância é bem pior que contrair o HIV, porque provoca uma forma de humano-DEFICIÊNCIA. Isto é muito mais prejudicial do que contrair qualquer tipo de vírus (...)” Enio Burgos – médico

          Meu amigo que mora em Passo Fundo se chama L., e por ter contado a outros sua condição de portador do vírus HIV teve sua vida transformada. Isto foi há uns dez anos**.  Pelas implicações dos sintomas acabou julgado incapaz por sua debilidade física e foi afastado do trabalho, não obstante, a cada dia via diminuir seus grupos de relacionamentos. Os preconceitos agravaram-se quando sua esposa, também jovem, morrera em consequência da AIDS. Contudo, meu amigo L.. não escondeu-se da vida e nem desistiu de seus objetivos, em que pesem todas as circunstâncias, conheceu outra pessoa e hoje tem uma companheira para apoiá-lo na difícil realidade de seu dia-a-dia.

          Acredito que seu amigo X, (vou chama-lo assim) possa estar sofrendo menos preconceitos do que o meu por não ter-lhe contado (e também nem aos outros amigos e colegas de trabalho) de sua doença, porém, posso assegurar que o seu sofrimento e ainda maior por isto. Seu amigo X. pode estar indo ao trabalho, buscando os filhos na escola, jogando o futebolzinho de final de semana, vivendo. Mas sofrendo.

          Acontece que o fato de não compartilhar seu sofrimento interno com outras pessoas (poucos soropositivos procuram a psicoterapia), sua atitude apenas o livra do preconceito, não da doença e nem das preocupações decorrentes.

           A citação sub-título é do médico porto-alegrense Enio Burgos e extraída de seu singelo livro “O verdadeiro significado da AIDS” (editora Bodigaya, 2005). Enio, um médico com larga experiência nesta área e com uma filosofia de vida muito particular, aborda a temática da AIDS ensejando uma profunda e nova compreensão sobre um tema universal e que, ao mesmo tempo, nos exige novos olhares e não apenas uma posição acomodada como a de quem já entendeu o assunto.

          O maior engano que ainda perdura é o de associar a AIDS à condição sexual das pessoas: “Um vírus que ataca homossexuais provoca peste gay nos EUA…” dizia um noticiário de TV quando da época da sua descoberta. A partir daí o preconceito rumou para as pessoas usuárias de drogas, para as prostitutas e depois para aqueles de comportamento sexual promíscuo. Se inicialmente a maior incidência de casos era entre os homens, hoje há muito mais casos de mulheres infectadas com o HIV, ainda que disponha de acesso a atendimento médico, ambulatorial e a medicamentos, venha a sofrer da humano-deficiência, esta espécie de deficiência típica do humano sem amor que é contagiado pela ignorância e pelo preconceito. Assim, a pessoa com AIDS, segundo Enio, pode chegar a ponto de perder a esperança em valores universais e altruístas como a paz, a bondade, a solidariedade, a fraternidade, a caridade, a paciência e a conciliação.

          Uma pessoa sem paz de espírito não encontra refúgio em lugar algum, então, como praticar a caridade se dela o seu coração ressente-se? E a falta de caridade e de amor causa um vazio interior tão grande que é preciso muito equilíbrio e serenidade para se restabelecer.

É importante que reflitamos sobre a maior fortaleza em que o portador do HIV poderá abrigar-se: o seu próprio Eu. Todavia, a construção deste lugar se dá primeiro com a aceitação de uma realidade modificada pela circunstância. Esta realidade poderá continuar a ter o mesmo brilho da busca pela felicidade se condicionada a uma vida mais humana, mais fraterna e conjugada por atos de bondade e de solidariedade.

          Assim como meu amigo L., o portador do vírus HIV poderá aprender que há tantas outras pessoas com sofrimentos maiores que o seu e que podem estar necessitando de sua ajuda, e, o mais bonito nisto, é poder sentir-se capaz de superar suas dores internas podendo também auxiliar ao próximo.

          Mas este estado de bem-estar precisa de um primeiro e importante passo, e está à cargo de todos aqueles com os quais convive: a exclusão do preconceito.

César Augusto – psicólogo

*artigo publicado no ano de 2008

** com a reedição deste artigo, o acontecido aqui relatado deu-se há uns 25 anos. Meu amigo está vivo (acabou de reenviar este artigo para mim, lembrando-me dele), obviamente que ainda medicando-se em decorrência do HIV, com uma saúde compatível ao seu quadro, mas com absoluta autonomia física, mental e disposição para viver. Na verdade, precisa até mesmo perder uns quilinhos… (Passo Fundo, 13 de abril de 2023).