O mês de novembro tem, no seu segundo dia, o feriado de Dia de Finados, uma celebração de culto aos mortos. Lembrei-me de um livro – da passofundende Adriana Bertoletti – cujo título é “Educando para a vida e a morte” e que em certo momento uma frase nos provoca a reflexão: “… o ser humano evita ir em busca do seu próprio eu por medo de se deparar com sua finitude, o que lhe gera angústia pela limitação sentida diante da morte”. Como profissional da enfermagem, a autora relata uma experiência singular de 15 anos de trabalho em Centro de Terapia Intensiva (CTI) e de sua responsabilidade como mestra e  professora que atua na formação de novos cuidadores da saúde. Só quem tem este contato diário com o sofrimento das pessoas em tratamento nos CTIs  (incluam-se seus familiares e amigos angustiados em salas de espera e em corredores) e com as limitações técnicas e humanas de  uma equipe de atendimento, pode relatar com precisão um tema que nos assusta só pelo nome.

          Mas como está explícito no título da obra, é também através de uma educação para a vida que o sofrimento poderá ser minimizado. A primeira grande lição que poderíamos apreender com nossas reflexões consistiria em não aceitarmos a banalização da morte. Temos notícias da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República (associada a Universidades e Unicef) sobre estimativas de que continuarão a morrer milhares de jovens por assassinatos no Brasil nos próximos anos: aos 14 anos, 25,1% das mortes ocorrem por homicídio, percentual que atinge 48,2% na análise dos óbitos aos 17 anos. Isso significa que o Brasil é o país em que mais morrem adolescentes vítimas de homicídios em todo o mundo, em números absolutos, com aproximadamente 10 mil mortes por ano. Na mesma linha, o estudo “Morte no Trânsito: Tragédia Rodoviária” realizado pelo SOS Estradas aponta para 42 mil mortes ao ano no Brasil, numa média de 35 por dia -uma a cada 40 minutos- sem falar naquelas que acontecem em hospitais, dias depois, como consequência destes acidentes de trânsito. Todos estes dados frios (e há muito mais) transformam-se quando um pai ou uma mãe aparece na clínica psicológica com um sofrimento intenso, deprimido e com sentimento de culpa e de incapacidade para viver por que uma destas mortes, prenunciadas em “estatísticas”, tornara-se realidade: perdera o filho.

          A segunda grande lição na educação para a vida seria a da necessidade de uma mudança cultural, a de aceitar que nascemos para morrer. A biologia sabe disto: as unhas de nossas mãos não são as mesmas com as quais agarramos a vida um tempo atrás; nossos cabelos já foram tantas vezes cortados que não são os mesmos de um retrato antigo; nossa pele?  Já era! Literalmente trocamos nossa casca várias vezes durante a vida. Se estas perdas nos acompanham diariamente, aceitá-las não significa inércia ou passividade, pelo contrário, podem representar uma conscientização seguida de muita ação e de trabalho para modificar um quadro banalizado sobre mortes que fingimos não ver.

          Viver é isto, um ato de morrer constantemente. Ao lançarmos nosso olhar para esta filosofia de vida, quem sabe nos tornemos mais amorosos, menos irritáveis, mais compreensivos, menos consumistas. Afinal, o tempo também nos consome a cada instante, e ficar na ilusão de que isto não esteja acontecendo, somente aumentará o impacto quando nos depararmos com a realidade.

César Augusto – psicólogo 

*publicado em novembro de 2021