O livro, que empresta seu título a este texto, é de autoria do escritor lusitano José Saramago e rendeu-lhe o Prêmio Nobel de literatura no ano de 1998. A obra explora limites da civilização e da moralidade em uma sociedade que enfrenta uma epidemia inexplicável de cegueira, “…é a fantasia de um autor que nos faz lembrar a responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam.– contracapa*” Leva-nos a pensar sobre aquelas pessoas (todos conhecemos ao menos uma em carne e osso) que vão se tornando cegas, egoístas e individualistas, ao ponto de não verem mais o próximo e de nem darem importância ao coletivo.
Costumamos chamar de cega a pessoa que não enxerga, mas também tratamos assim pessoas com baixa visão que transitam pelas ruas com bengalas, possíveis de serem distinguidas pelas cores das mesmas. Há cegos de nascença, há os que sofreram acidentes traumáticos e que lesionaram órgãos/área da visão, ou, ainda, os que perderam a visão decorrente de processos infecciosos por patologias. A percepção de mundo de uma pessoa que perdeu a visão com determinada idade é diferente da daquela que jamais viu a luz.
Falo agora de dois amigos: o primeiro relata que enquanto estava em uma viagem a trabalho há 20 anos, na hora do almoço, sofreu uma queda seguida de um “apagão”, tendo recobrado sua consciência algumas semanas depois em um quarto de hospital já sem visão. Passados estes anos, seu quadro mudou, hoje tem perda total em um dos olhos e baixa visão no outro, o que não lhe impede de viver pois isso não o paralisou numa condição de vítima. No segundo caso, há pouco mais de três semanas, “do nada” – palavras de meu amigo- tudo ficou escuro num instante juntamente com a perda da visão; veio então a internação hospitalar seguida de três semanas de exames e de tratamentos buscando a reversão do quadro, o que foi conseguido com êxito. Em ambos os casos perguntei a eles que sentimentos tiveram nos momentos mais difíceis dessas experiências: surpresa, confusão mental, medo de permanecer sem visão, ansiedade e insegurança sobre o futuro foram alguns relatos. Por outro lado, o apoio recebido de familiares e amigos, e, até mesmo de desconhecidos (profissionais ou não) envolvidos nos atendimentos ou emanadores de preces em todas as crenças, os quais, deram suporte emocional confortando as dificuldades. Seus relatos lembraram-me uma passagem do livro de Saramago quando duas personagens dialogam: “Quem sabe, esta cegueira não é igual às outras, assim como veio, assim poderá desaparecer.”
Não precisamos passar por estas dolorosas experiências para valorizarmos a saúde que temos, mesmo que nos queixemos de uma dor aqui, outra ali… Poder ver, admirar, ser recíproco a um sorriso captado pelo olhar, prestar um auxílio, admirar um nascer do sol, a lua, permite-nos viver a antítese das personagens em “Ensaio sobre a cegueira”, as quais, não podendo ver ao seu redor, agem de forma egoística e sem qualquer consideração ao próximo.
Preciso ainda acrescentar a genialidade do músico Oswaldo Montenegro quando canta: “Se em terra de cego quem tem um olho é rei, imagina quem tem dois!”. É aí que fica reiterada a advertência acima sobre a responsabilidade em termos olhos e não termos visão; é quando a cegueira é por desatenção, por más escolhas, por resistência a mudanças, por “não ver além do próprio nariz”. É no momento em que nos indagam sobre como não vimos tal coisa, aquilo era tão óbvio! Ficamos patéticos na condição de quem tem olhos mas não consegue ver. Bem, nessas horas o acolhimento sem julgamentos que uma psicoterapia pode propiciar torna-se uma ótima ferramenta de apoio para que voltemos a ver a vida de maneira a bem vive-la.
Modestamente, com este texto, rendo minha homenagem à Associação Passofundense de Cegos, que neste mês de julho de 2024 completou 25 anos de existência em nosso município prestando incontáveis e prestigiosos serviços a seus integrantes e familiares. Foi por seu intermédio que fiz amizades com associados cegos e de baixa visão que me ensinam, a cada encontro, que é possível ver a vida (com alegria e sem lamentos) muito além das limitações sensoriais. Gratidão.
Parabéns APACE!
César Augusto – psicólogo
artigo publicado em agosto de 2024